Entrevista com a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca
x Clajadep - [ 09.11.06 - 04:28 ]
Entrevista com Flavio Sosa, referente à APPO
"A APPO ESTÁ QUESTIONANDO AS FORMAS TRADICIONAIS DE FAZER POLÍTICA"
Flavio Sosa é um dos integrante da “direção coletiva provisória” da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca. Apesar de ser neste momento uma das caras mais visíveis da APPO, insiste que “o nosso movimento não é de líderes”. O que segue são alguns fragmentos de uma longa conversa que mantivemos com ele – junto a outros companheiros – no plantão instalado na emblemática praça de Santo Domingo, bastião da resistência em Oaxaca.
Por Hernán Ouviña
Como nasce a APPO?
Desde a época pré-hispânica existe em Oaxaca uma grande tradição de assembléias. Nas comunidades indígenas a assembléia popular é a máxima autoridade. A APPO nasce pretendendo ser uma assembléia de assembléias, que contemple aos zapotecos, aos mixtecos, aos mixes e aos diversos povos, comunidades e organizações que têm interesse em participar no movimento.
A APPO está integrada por 350 organizações?
Sim. Num primeiro momento participaram desde organizações comunitárias e de bairro, passando por sindicatos e frentes, até organizações da sociedade civil, inclusive uniões de profissionais. Por isso dizemos que a APPO tem muitos perfis. De 10 a 12 de novembro se vai levar a cabo nosso primeiro congresso fundacional, para dar-nos uma estrutura orgânica e mais solidez no que se refere a uma plataforma de princípios.
Num primeiro momento, a APPO é uma resposta popular ante uma agressão que sofreu o magistério, e para a busca de um objetivo comum que é a saída de Ulises.
Posteriormente, vai madurando a idéia de não somente buscar a queda de Ulises Ruiz Ortiz, mas também de ir transformando as condições de vida que temos, e sentando as bases de uma nova relação sociedade-governo.
Nesta perspectiva se realizaram sucessivos exercícios de discussão muito interessantes, com a participação inclusive de intelectuais, acadêmicos, religiosos e membros de outros organismos, onde se debateu quais reformas necessita Oaxaca, e para onde tem que caminhar o tipo de governo que queremos. Este é como um trilho no qual corre a APPO. O outro trilho é a luta de rua, que finalmente está convertendo-se, de um movimento pacifista em um movimento que tem tido capacidade de responder ante agressões como as que sofremos por parte da Polícia Federal Preventiva (PFP).
Por que se mudou o nome da Assembléia Popular do Povo para Assembléia Popular dos Povos (no plural)?
Isto foi no começo de setembro. Pusemos “dos povos” porque havia uma grande crítica. Nós chamamos “assembléia popular” ao espaço onde discutimos na comunidade. Onde se debatem e decidem as coisas do povo? Na assembléia popular. Logo se fez uma reflexão e decidimos que não podia ser “do povo”, mas “dos povos”, porque somos muitos povos, muitas etnias. Temos distintas raízes e por tanto, diferentes perfis.
Como surgiu sua dirigência coletiva e que relação mantém com as bases?
A dirigência surge de uma assembléia geral que se realiza em 20 de junho. É uma direção que chamamos “coletiva provisória”. Agora teremos um congresso, onde tentaremos dar-lhe um caráter mais definitivo (Nota da Clajadep: achamos que aqui existe um erro, já que a palavra “definitivo” aparece como contraditória ao caráter flexível e inovador que desenvolve a APPO. Pensamos que deve dizer "definido" em termos de "perfilado", "claro", "preciso", e que se trataria de uma falha de transcrição) a esta direção. Teremos uma representatividade tanto por parte das regiões, como das organizações mais ativas do movimento, porque há diferentes níveis de participação. Há aqueles que estão momentaneamente, se retiram um pouco, e logo voltam para participar quando há marchas ou plantões. A participação varia segundo o compromisso e as possibilidades de cada organização. Há organizações muito localizadas em determinadas regiões, então lhes custa muito trabalho estar permanentemente na cidade. Oaxaca está muito dispersa geograficamente. Por exemplo, para chegar ao Istmo (de Tehuantepec) temos que viajar 10 ou 12 horas, a mesma coisa para chegar à Sierra. Por isso não pode haver dirigentes permanentemente em nível central. Têm sido feitos distintos esforços, mas ainda não está muito consolidada a regionalização da APPO. Estamos trabalhando para que a APPO baixe a todas as comunidades.
Que ocorreria com a APPO após seu congresso constitutivo?
Não sabemos para onde vai discorrer isto, porque agora sim temos que escutar o que diz a base. Este movimento nasce como uma resposta a uma agressão brutal, mas logo começa a questionar tudo: questiona os meios de comunicação, e a vários os "toma" e os fez seus; questiona as formas tradicionais de fazer política, e pretende planejar novas formas de fazer política; questiona os partidos políticos, e não deixa que nenhum partido político o conduza; questiona inclusive as lideranças mesmo, e gera uma liderança coletiva; questiona um mau governo, e planeja tirá-lo. Então se começa a conformar como um movimento antisistêmico, que alarma a classe política. "Como é que a luta de rua pode nos estar questionando praticamente o status quo, a forma de fazer política?", se perguntam os políticos. E se são as pessoas que estão questionando todas as formas tradicionais de fazer política, nós pensamos que também são elas que têm que inventar algo novo neste Congresso.
A dirigência da APPO tem ordens de apreensão?
Toda a dirigência tem ordens de apreensão. Ao que parece se expediram mais de 300 ordens. Ontem, por exemplo, nos interamos de uma nova ordem de busca contra a Radio Universidad, supostamente para buscar armas e para deter alguns líderes. Nós procuramos não ficar lá para não dar pretextos. A repressão tem sido permanente. Inclusive têm jogado bombas molotov nas casas dos principais dirigentes da APPO, e quiseram invadir vários domicílios particularidades. Ulises tem feito do terror uma prática política constante. Atua tanto através da polícia como por meio de pistoleiros. Existe uma rádio chamada Ciudadana, a qual nós chamamos rádio Mapache, que chama à perseguição dos dirigentes, incita as pessoas a irem a nossas casas. Inclusive querem nos relacionar com fatos delitivos como o narcotráfico, para justificar a repressão. A coisa não tem nenhum fundamento: o nosso é um movimento popular.
O que você pode nos dizer sobre o diálogo que supostamente vai começar esta segunda 6 de novembro na Catedral da cidade?
Num primeiro momento se pensou num espaço de diálogo entre a APPO e a sociedade civil, porque entendíamos que era preciso parar as agressões. Chegou a PFP (Polícia Federal Preventiva) e começou a invadir os domicílios, e a deter líderes populares em algumas colônias. É assim que surge a idéia do diálogo na Catedral. Conversamos com a autoridade eclesiástica aqui em Oaxaca e ela nos põe uma série de condições. No princípio dizemos que sim, apesar de pensarmos que eram excessivas, devido ao fato de que a paz em Oaxaca era uma necessidade urgente. Mas em um segundo momento, depois da batalha na cidade universitária, nossa posição se modifica, posto que a correlação de forças mudou, e o ânimo das pessoas também. Inclusive em nível nacional é outra a perspectiva que se tem sobre Oaxaca. Como se derrotou na luta à PFP, há uma situação política que inclusive põe em risco a existência mesma da PFP. Isto nos coloca em uma situação política muito importante na luta política nacional, e pensamos que o assunto da paz é urgente sim, mas já não estamos tão na defensiva e condicionados.
Por isso consideramos que podemos passar para a ofensiva. Sob este pretexto é onde nasce a megamarcha que estamos preparando para este domingo.
É nesta troca de pontos de vista com os organismos da sociedade civil, com os quais se tinha originalmente pensado em conversar, que nos pedem que lhes dar-mos a oportunidade de trabalhar este espaço de diálogo que começará segunda-feira.
O governo federal estará presente?
Acredito que não, ainda que tenhamos solicitado falar com eles e que nos escutem. Se eles dizem à APPO: “não é preciso que vocês falem”, então nós os respeitamos. Vamos deixar este espaço para a sociedade civil. Pensamos que é um espaço importante para ela, e que vai nos ajudar a buscar caminhos para encontrar a paz. Por um lado está este trilho, e por outro está o da mobilização popular, no qual vamos pressionar muito forte. Temos também uma proposta de diálogo de maneira direta com o presidente da república, mas necessitamos que nossos presos estejam livres, e que vá embora a PFP. Em definitivo, a solução do conflito tem a ver com a saída de Ulises Ruiz e com os compromissos que têm que ser conseguidos para transformar Oaxaca.
Se não há uma delegação governamental nos diálogos que se iniciarão nesta segunda, quem vai ser a contraparte?
Não vai ser um dialogo bilateral, mas um espaço multilateral. Nós pretendemos dizer o que pensamos, para que entre os distintos setores da sociedade civil se chegue a uma conclusão de quais são os melhores caminhos para que haja paz e para que vão embora a polícia e Ulises Ruiz de Oaxaca. Pelo menos este é o nosso objetivo. O que esperamos do diálogo é sensatez, propostas e reflexão profunda. Vamos ver se podemos nos entender.
O que ocorreria se conseguirem tirar Ulises, mas de cima puserem como governador outro personagem com perfil parecido?
Não é possível, porque Oaxaca não permitiria. Eles sabem disso. No dia que cair Ulises vai haver uma festa em Oaxaca. Muita gente que não tem se manifestado a nosso favor vai sair às ruas dizendo: “Ganhamos! Eu estava com vocês!”.
Já observamos este fenômeno na ocasião das marchas. As pessoas não se somam no princípio, mas quando se vêem neste grande espelho que são as megamarchas, se somam.
Qual é o propósito da megamarcha deste domingo?
Demonstrar a força e o respaldo popular que o movimento tem. Também demonstrar o rechaço à PFP e a busca de soluções para o conflito de maneira pacífica.
Pensam em articular sua luta com outros grandes movimentos que existem no México, como o zapatista e o de resistência civil à fraude [eleitoral]?
É muito triste dizer isto, mas agora esta não é nossa prioridade, ainda que tenhamos sim um compromisso com a transformação democrática do país. Vamos ver de que maneira tornamos isso efetivo. Em Oaxaca se deplorou o tecido social de uma maneira terrível: as pessoas perderam o emprego, os professores estão sem dar aulas, existem problemas nas comunidades, o setor de saúde está parado, se afetou também a terceiros; temos que reconhecer. Vivemos uma situação de emergência e necessitamos primeiro resolver o assunto local. Mas de nenhuma maneira nos desinteressamos pela problemática nacional. De fato, consideramos necessário vincular-nos à Outra Campanha e à Convenção Nacional Democrática. Inclusive vários organismos que estamos aqui participamos destes espaços.
Alguns setores lhes criticam a focalização de sua luta na queda de Ulises Ruiz, sendo que o próprio Felipe Calderón também é produto de uma fraude.
Não seria correto que Calderón entre como presidente, isto tampouco seria nossa principal responsabilidade, mas de todo o movimento nacional. Não queremos nos converter na vanguarda do movimento nacional. Não é tarefa nossa. As pessoas não saíram às ruas de Oaxaca para que a APPO seja a vanguarda do México.
Os integrantes da APPO dizem que o seu não é um movimento de líderes, mas de bases. A quê se referem?
Olha, quem te fala é uma das caras mais visíveis da APPO. Vamos supor que eu decido pactuar com Ulises. Então vão me pôr de lado e este movimento vai continuar. Aqui eu não tomo as decisões. Em todo caso, me toca uma responsabilidade: falar com a imprensa ou difundir alguma posição, mas eu não mando na APPO. Minhas opiniões às vezes têm êxito nas assembléias, e às vezes dizem “este senhor está louco”, e simplesmente não me levam em conta. Este não é um movimento de um partido. Tampouco lhe podem exigir "disciplina", porque não é um exército. Por exemplo, ontem custou muito trabalho à “direção provisória” tirar um acordo na assembléia geral, apesar de levar uma proposta consensuada de conjunto, que consistia em propor que se desocupassem as principais vias. Conseguiu somente tirar o acordo, mas para que baixe este acordo às bases, vai lhe custar um chingo, ainda que aos companheiros lhes expliquemos as bondades da proposta. Isso nenhum líder vai conseguir.
Também desocuparão os arredores da Cidade Universitária, como o Cruzeiro Cinco Senhores? (onde se derrotou a PFP na quinta-feira passada)
Ai vai haver uma situação especial. Se você propõe aos universitários tirar os bloqueios ao redor da Cidade Universitária, te "avientan la madre". Por isso te digo que este movimento não depende de líderes. Vou te dar outro exemplo; eles têm um comitê que conduz a Rádio Universidade, e esse dia dos combates lhes disse: “ouçam, me dêem chance de dirigir uma mensagem”. Me responderam “não”, não é possível, há emergência”.
Insisti pedindo-lhes nada mais que um minuto, e a resposta foi a mesma. Por isso dizemos que este movimento não é homogêneo, mas multidirecional. É uma visão tradicional da política buscar esse ou aquele líder, porque está a frente dos protestos ou aparece mais na televisão. Inclusive aqui há garotos que picham na parede “se crias um líder, crias um tirano”.
Evidentemente que há razões profundas para defender esta idéia, e nós a respeitamos. Por isso é importante entender que este movimento é de toda a sociedade, tratando de conviver e marchando juntos. Há compas que, por exemplo, trazem consigo a foice e o martelo, e de um lado estão as comunidades eclesiásticas de base que trazem a Vírgem de Guadalupe. Esta é a grande virtude de nosso movimento. Por isso insistimos que “não é de líderes”. Em uma ocasião, quando começou a correr esta frase, alguém fez um cartaz que dizia: “este movimento não é de líderes, é de bases”, e terminava assinado-o como grupo. No mesmo instante, uns garotos inteligentes acrescentaram com caneta: “não é de líderes, mas também não é de grupos”. Essa é a realidade.
Praça de Santo Domingo, cidade de Oaxaca
4 de novembro de 2006
Tradução: Magão